O FOTÓGRAFO
O FOTÓGRAFO
Sem si atrasar um segundo, como fazia há sessenta anos, Sr. Antônio Carlos, o fotógrafo, chegava à pracinha modesta onde batia o ponto religiosamente, herdara o ponto de seu pai, que por sua vez herdara do pai dele, negócio de família. Pai de seis filhos, casado há 55 anos com D. Etelvina. Pegava seus instrumentos de trabalho e se dirigia à sua repartição, que ficava em frente a uma farmácia de produtos natural bastante requisitada ele, como sempre, pegava o cavalete, abria-lhe as pernas, procurando um ângulo perfeito para o equilíbrio e em seguida acoplava nele o seu instrumento de trabalho, o velho lambe-lambe, que herdara de seu pai e com o qual aprendera com orgulho o ofício, pouco estudo, porém habilidoso nos trabalhos manuais, concertava quasede tudo, desde cabo de enxada, até as paredes tortas cujo prumo estava duvidoso, contudo sua paixão mesmo era a fotografia. As poucas pessoas começavam a vir e ir de todos os lados parecia umas não verem as outras, chaga desses séculos, a indiferença, cada qual absorvido dentro do seu próprio mundo vão girando nessa imensa roda-gigante, e às vezes disparam atropelando uns aos outros e seguem seus destinos, andam absortos presos às suas próprias invigilâncias, aos seus sonhos, e pagam o preço, mormente da solidão mesmo estando nas multidões. As árvores frondosas ladeavam o seu escritório, paisagem privilegiadíssima, os pássaros, na copa, entoavam concertos maviosos, D. Clementina, a quituteira, chegava com seu tabuleiro, vendia cocadas, bolinhos de chuva e o mingau de tapioca que era disputadíssimo, faziam fila para degustar o delicioso acepipe. Moreno, o filho de Sr. Augusto vendia jornais, Paulo Flores, com sua barraquinha vendia doces e fazia a festa da criançada, esses eram os seus colegas mais próximos que igual a ele batalhava arduamente de verão na verão. Antônio sentava-se no banquinho de madeira que fora de seu avô e esperava pacientemente os clientes que nunca chegavam, ou quando chegavam traziam consigo a pressa, o que não era bom para seu negócio, uma vez que seus negócios necessitavam de sutileza e que a mão adestrada do artista lapidava com esmero, fazendo coro que a pressa é inimiga da perfeição. Ele na realidade ainda não tinha percebido que muitos desses clientes, ex-clientes, tinham mudado seus hábitos, as suas rotinas e muitos deles desviaram o caminho, ou por força de um novo trabalho, ou porque havia mudado para outra região, ou porque os shoppings os atraíam, o certo é que, dos antigos clientes eram bem pouco, bem escassos, quase nenhum. Enquanto esperava, pacientemente, pitava seu cachimbo e tentava ler o jornal do dia, com pouca leitura, esforçava-se e lia algumas palavras, quem lhe deixava informado mesmo das notícias do dia, além do seu radinho de pilha, era o João da padaria, sujeito letrado que estudava à noite para ser enfermeiro, esse era o seu sonho, trabalhar num grande hospital, ajudando pessoas, minimizando seus sofrimentos. Sr. Antônio estava desgostoso com a situação, tinha dias que levava o pão para casa com poucos trocados, ou na conversa, tinha crédito, honrava o fio do bigode, herdara o valor da palavra empenhada com seu pai, custasse o que custasse, honrava com seus compromissos, assim foi adquirindo crédito na região, era no açougue de Josué, era na mercearia de Tonho Cruz, a branquinha ele nunca comprou fiado, a dose correspondia o que sobrava depois das suas obrigações, com a padaria,o açougue,o mercado, contava as moedas,e dizia: -hoje só quer vinte e cinco centavos, noutro dia pode caprichar, setenta centavos, e assim por diante, a obrigação com sua a família vinha em primeiro lugar. Ele ainda não notara que os tempos eram outros, e não havia procurado nadar de conformidade com a maré, era o tempo dos shoppings, das lojas de departamentos e dos megapixels, das máquinas fotográficas digitais de última geração, que em fração de segundo apresentavam o produto ao cliente, tempo dos microcomputadores, dos photoshop deixando a todos mais atraentes mais bonitos e contentes consigo próprio, satisfeitos, ainda não havia caído à ficha de que aquela caixa preta estava em desuso, era obsoleta e estava sendo esmagada pelo progresso inevitável, e ele seria levado de roldão. É tanto que os dois cinemas antiguíssimos e que fizera grande sucesso com a sociedade da época a duas quadras da sua praça, fecharam as portas, ou melhor, surgia em seu lugar a igrejas, grande filão que estava sendo explorado por aqueles que tinham grande sagacidade para falar em nome de Deus, e prometer os reinos do céu, ele mesmo era cliente, ou melhor fiel de uma dessas igrejas. Os cinemas agora estavam nos shoppings, telas modernas, som Dolby Digital, que por certo irá evoluir com o tempo. Concorrer desta forma, sem apresentar qualidade em tempos recordes, com as mãos atadas no passado, sem apresentar ao cliente novidades, um produto de grande qualidade como podiam fazer essas máquinas modernas, o asfixiava, era como se ele fosse invisível, todo o seu aparato de fazer fotos estava antiquado, ultrapassado, arcaico, desatualizado, assim como ele, não como pessoa, mas como profissional. Por ironia do destino, em lugar da farmácia popular cujo dono migrou para outro ramo de negócio, abriram uma loja que comercializava produtos fotográficos, máquinas de última geração proporcionavam fotos irretocáveis, atraindo, assim, grande clientela, afeita a buscar a excelência, era um verdadeiro massacre, desumano e impiedoso, enquanto Antônio cobrava três reais por uma dúzia de fotos em tons descoloridos, seu concorrente dispunha de material de qualidade exemplar distribuindo mil cores, mostrando todas às nuances satisfazendo os clientes, por preço módico que cabia também no bolso dos clientes. A situação foi ficando mais aguda, se agravou, e realmente piorou, e não havia como serem diferentes, aqueles clientes que de verão em verão apareciam, agora atravessavam a rua, e iam buscar qualidade, preço, satisfação na loja em frente, não tinha como detê-los, ele não oferecia um serviço que pudesse concorrer com aquelas máquinas poderosas, curvou-se. Seu Antônio estava cabisbaixo, nem mais o radinho de pilha seu amigo, o entretinha, gostava de ouvir as notícias, de ouvir música, enquanto trabalhava, contudo sem se descuidar das suas obrigações, de conversar com seus clientes, era carismático, sabia fazer amizades, e melhor ainda mantê-las. Vários dias não pediu mais auxílio ao João da padaria, ficava sentado na mesma posição da hora que chegava à última, olhando com olhos compridos o sucesso do seu oponente, não por inveja, mas tinha a necessidade de também trabalhar, de levar o pão para casa, de passar no açougue, na mercearia, às vezes chegava a contar quantos entravam por dia naquela loja, e ele ali sem saber o que fazer, horas reforçava o pensamento em largar tudo, iria concertar iria procurar outro serviço, notara que sua falência no ramo das fotografias era eminente. A duras penas passou a compreender as circunstâncias, sua situação, o que faria? Esse era o seu ofício, ofício de seu pai, do seu avô, que há várias décadas foram testemunhas oculares das incessantes mudanças daquela praça modesta, ele mesmo presenciou dezenas delas ao longo desses anos, e quantas e quantas vezes com alegria e satisfação por amor a sua arte, repetiram incansadamente: Olhe o passarinho! Olhe o passarinho, pronto, a foto estava tirada, a qualidade era um pouco controversa, mas a foto era entregue ao cliente, precisavam da mesma com urgência, e essa era a saída mais rápida da época. Muitos daqueles clientes hoje eram pais de família, e muitos traziam seus filhos para ele fotografar, assim às vezes fotografava duas, três gerações, porém agora estava em dificuldades sérias, não acompanhara o progresso. As mãos carcomidas pelo tempo denotavam a labuta, vestido num batido terno de linho surrado, dilapidado, farda diária de vários dias de vários anos, estava ele ali, absorto, sem saber que rumo tomar, em que pese de já fazer planos, e via a construção como ramo viável, sabia desentortar paredes, levantá-las com exímio esmero, arriscava-se como encanador, e nas horas vagas tiraria a fotos daqueles que o procurassem, principalmente no bairro onde morava, essas possibilidades eram criadas por ele com grande simpatia, olhava em todas as direções, de repente mudou o foco, deteve-se a observar para a velha Clementina e constatou que ela conseguiu manter alguns clientes de outrora e fizera algumas freguesias novas, ficou contente por ela. Logo, logo voltou à realidade, e a sua era deveras penosa, obtemperou a sua condição, parecia que dois filetes d’água percorriam uma trajetória naquele rosto gasto pelo tempo e marcado pelas vicissitudes, notara com o coração compungido, que várias pessoas, com suas máquinas possantes, faziam pose bem na sua frente e disparavam suas câmeras suntuosas, eram casais, estudantes, que matando a aula ficavam ali, na sua pracinha pandegando, namorando, deixando o tempo passar, e parecia que ninguém o notava, o via, ele não tinha mais serventia, estava entristecido e sua dor compreendia sua a realidade. Sujeitos felizes tiravam fotos alegres, sorriam, brincavam, enquanto ele estava ali, impotente, amargurado, as pernas trêmulas, olhos cansados mãos vazias, até àquela hora, e já era manhã alta, ninguém havia procurado os seus serviços, se sentia um inútil, estava envergonhado, falava consigo mesmo inconformado, macambúzio, sabia que era inevitável uma tomada de decisão, mas empurrava com a barriga. As folhas espalhavam-se sobre o solo, anunciando a nova estação, os transeuntes começavam a ir e vir em maior fluxo, com os passos cosendo a calçada eles se dirigiam de volta aos seus lares, os ônibus também os imitavam, e arrastavam-se presos nos engarrafamentos, não conseguira nenhum cliente, olhou para as primeiras estrelas, nenhuma resposta, foi à padaria, empenhou a palavra levaria o pão para casa, hoje não deu conversa à branquinha, não passou na bodega de João das ervas. Ele desarrumou sua vitrine, o seu palco e, inabitualmente, jogou todo o seu tesouro sobre as costas, sobre aquele corpo alquebrado, maltratado pelas intempéries da vida, e com passos irresolutos começou arrastar-se, na ilusão do cliente derradeiro, iludiu-se, quem sabe era um retardatário criou expectativas, alguém que ia precisar com urgência daquelas fotos, mas como, como, já era noitinha, convenceu-se do seu delírio, e agora com passos resolutos caminhou, abandonou o seu ponto, seu escritório de muitos anos, que herdara dês eu pai, pensou no pai, o que ele acharia daquela situação, o acharia um fracassado? Ficou aflito com aquela possibilidade. Com toda aquela carga sobre suas costas, parecia que carregava o mundo, a sua vida, os passos agora ficaram mais miúdos, olhos marejados, voz trêmula, gritou: -“Olhem o fotógrafo, olhem o fotógrafo”. -Olhem o fotógrafo! Continuou andando, um filme passava pela sua cabeça, via seu pai, via seu avô, via a sua praça, via seus primeiros dias atendendo os clientes, todo garboso, atencioso, lembrou-se de como conheceu sua esposa naquela praça, lembrou-se dos dias atrozes e como perdera seu primogênito par a tuberculose e para não se machucar ainda mais fechou as portas às recordações. Estava decretada sua falência, sim, o progresso é inexorável, era cruel com aqueles que não se adequavam ás novas tendências, que tentavam fechar os olhos num show de irresponsabilidade, ou simplesmente lhes faltava a acuidade necessária, como consequência de diversos fatores, que iam desde a simples ignorância, ao apego excessivo, não abrindo mão de suas convicções mesmo que ultrapassadas. E por não querer, ou não poder, ou por qualquer outro motivo que o valha, não se adequar às novas ondas de mudanças, imperativas, não respondendo aos novos comandos, paga-se um preço. Albérico Silva
AlbéricoCarvalho
Enviado por AlbéricoCarvalho em 14/07/2012
Alterado em 23/03/2022 |