O CAMELÔ
O CAMELÔ
O Sol apareceu macambúzio, escondido por detrás do tamarineiro. A cidade acordava sonolenta e espreguiçava-se na manhã de quinze de junho, faltando algumas horas para a estreia do Brasil na Copa, em busca do sexto título sonhado por milhões de brasileiros que colocam todas as suas expectativas no torneio mundial. Alguns transeuntes e alguns funcionários públicos chegavam, arrastando-se sem nenhuma disposição. Os carros trotavam e alguns camelôs despontavam com seu material de trabalho. Entre eles João Totinha, que marcava ponto há mais de 45 anos com sua banca bem em frente ao Banco do Brasil. Vendia de tudo, desde grampo para o cabelo das senhoritas até brinquedos para crianças e, a depender da ocasião, comercializava os produtos referentes àquela época. Agora, valia-se da febre nacional para vender tudo que fosse verde-amarelo. Sua banca estava apinhada de chaveiros, bolas, bandeirolas, biquínis, toucas, bonés e, principalmente, as camisas e outros tantos adereços, tudo nas cores da nação. O vai-e-vem se intensificou ao longo da avenida. As pessoas agora andavam com mais disposição. Os ambulantes disputavam no gogó o pão nosso de cada dia. Motos, carros e os coletivos pleiteavam o espaço com os viandantes, que andavam quase que no meio da rua, pois a calçada estava repleta de vendedores, que disputavam com as lojas a comercialização dos seus produtos, vendendo os mesmos cerca de 20% mais barato do que os grandes magazines, o que gerava grande descontentamento. O Sol continuava tímido e se debruçava sobre a Jubaí. A algazarra tomou conta do lugar. Os meninos que passavam queriam comprar a bola da Copa e as bombas de São João; as meninas, os estojos de maquiagem e os shortinhos super curtos também com os adereços da Copa. Totinha se virava como podia nesse dia. O neto mais moço não foi ajudá-lo e ele multiplicou os braços e as pernas. As camisas verde e amarelas e as bolas eram as campeãs da vendagem. No seu 1,45 m, era chamado pelos colegas de bujão. Gostava de usar vários aneis e algumas correntes. Era uma figura amada e respeitada por todos, principalmente pelos seus colegas de profissão, que o admiravam e se aconselhavam com ele. Passara bons bocados, enfrentara várias ações dos chamados "rapas" e da polícia, que aparecia do nada e confiscava a mercadoria. Hoje ele é credenciado e exibe seu alvará de funcionamento, como diz ele, pagando uma taxa à Prefeitura local. E assim trabalha sossegado. No dia do jogo chegou a caráter, macaquinho verde e amarelo, meiões até a altura dos joelhos - um de cada cor - e como calçado uma chuteira que parecia ser alguns números acima do seu. No pescoço grosso, correntão de prata e, sobre a cabeça, um chapéu. O rádio gigante e inseparável estava finamente decorado. Os fregueses retardatários compravam cornetas e o mascate ouvia as informações do locutor pelo rádio: a escalação do esquadrão nacional, a queixa pela ausência de Ronaldinho, do qual ele era fã. O vento suspirou e o Sol também. E as folhas, na copa da tamarindeira, bailavam ritmicamente, pareciam sorrir da atitude deles com ar debochado. Sem-Teto, seu amigo de infância, acabara de chegar e arriscou um gracejo quando uma morena de bumbum generoso, vestida numa minúscula saia amarela e decote pródigo, passou rebolando os quadris. Manoel das Cabras, o outro amigo, chegou a tempo de rir de Sem-Teto e ficou tirando sarro dele. Trazia nas mãos uma garrafa de água especial. Faltavam aproximadamente quinze minutos para o início do grande jogo. Totinha experimentou a água de Manoel das Cobras e fez sinal de aprovação com o polegar e uma careta incrível. Mais fregueses foram chegando, procurando pelas camisas e pelas cornetas. Totinha estava radiante. A vendagem estava boa. De repente, uma grande correria. O chamado "rapa" vinha com toda fúria, confiscando as mercadorias sob protestos veementes. Alguns tabuleiros foram desarmados em fração de segundos. Mãos jovens e ágeis agiram antes dos fiscais da prefeitura, que exerciam o seu trabalho e, de certa forma, tolhiam pais de família de também exercerem o seu. Totinha tentou imitar os jovens, mas o reflexo estava comprometido pelo peso dos anos. Seus amigos de mesma faixa etária se arriscaram a ajudá-lo, também sem êxito. Totinha tentou erguer sua bancada, mas sua força não foi proporcional e os fiscais foram mais rápidos. Chegaram implacáveis, vociferando, usando força desmedida. Ele aventou salvar algumas peças, as mais valiosas, mais foi em vão. Exibiu seu crachá, mas foi colhido pela prepotência e grosseria. Um mal súbito o fez levar a mão ao peito. Todos correram no afã de ajudá-lo, mas o baque surdo foi inevitável. Totinha esparramou-se no chão. Nesse momento, o grito de gol foi abafado, o Sol entristecera mais ainda, algumas nuvens espessas chegavam fragorosas e os primeiros pingos de chuva molharam o brio. A ação do rapa foi freada pelo infortúnio. As mercadorias coloridas espalhadas contrastavam com o ambiente. A chuva engrossou os pingos, os guarda-chuvas espalhados pelo chão não tinham agora serventia alguma. Uma sirene fez-se ouvir de longe e anunciava a sua chegada. Foram retirando-se do cenário cabisbaixos. as caminhonetes, apinhadas de nercadorias, também partiram. Tinham cumprido o seu dever, em que pese o paradoxo: homens eram cerceados de exercer suas profissões, muitos deles semi-analfabetos que viam no mercado informal a única válvula escapatória para os seus problemas, e se sentiam úteis, podiam trabalhar. Mas naquele dia esse direito foi frontalmente desrespeitado, agredido, e ficaram sem o sustento da sua família. Estavam arrasados e solidários com Totinha. Enquanto isso, outra parcela da população, felizes gritavam e festejavam mais um gol.
AlbéricoCarvalho
Enviado por AlbéricoCarvalho em 18/07/2012
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