XIS DO PROBLEMA
Somos animais, irmãos nos reinos, racionais ou não, somos criação de Deus.
A nós, Ele nos criou simples, e ignorantes, apesar disso, o irracional em nós,
Nos torna próximos, Senhor, e tão racionais, tão quanto os demais animais.
Albérico Silva

 

POESIA PARA AMIGOS

Escrevemos algumas páginas durante a vida, sem notarmos, falamos de nós mesmo...

Textos


ANAS

O sino da igreja no centro da cidade anunciava a hora dos anjos, 18 badaladas características davam a entender que mais uma tarde ficara no passado, já era história. As luzes começaram acender-se nas casas, e nos postes, nas ruas, e pareciam pequenos faroletes. O sol retirava-se agora ligeiro, apressado, um colorido impressionante, digno de um cartão postal, e fazia convites às estrelas.

As primeiras estrelas começaram cintilar no zimbório, esculpindo o firmamento com pontos de luz, que se derramavam por todo o céu. A lua chegou atrasada e tímida. Havia uma movimentação invertida, aqueles que pela manhã saíram de suas casas, ou em outros horários, indo ganhar com o suor do seu rosto o pão de cada dia, agora regressavam para os seus lares, com passos lentos denunciando o cansaço da jornada, iam cosendo as calçadas, alinhavando-as.

As folhas nas árvores, parecendo gangorras, balançavam-se, pareciam brincar, pareciam saudar a noite que chegara. A brisa soprava com lábios doces e sensuais, um vento bem-soante, uma aragem amena e delicada, que dava boa noite a todos que por ali passavam, e era visível à satisfação com o presente recebido da natureza.

Os ônibus apinhados expunham a impotência dos usuários, que se submetiam a um transporte coletivo defasado e caro, parecia mais um curral de bois. Porém estavam felizes, pois estavam retornando aos seus lares. O metrô oferecia mais conforto, contudo ia também com carga máxima. Já eram 19h45min, o vai e vem ainda se mantinha constante, intenso, continuava o engarrafamento dos carros, ônibus e transeuntes, as lojas no centro, ensaiavam bater o relógio de ponto, nas vitrines os manequins também cansados, bocejavam, e já semidespidos mostravam o propósito claro do descanso, reflexos nas intenções dos lojistas, que após mais uma árdua jornada de trabalho, de mais de 08 horas, via no repouso um bem, necessário.

A brisa continuava soprando, galante, gentilmente, vento eufônio, entoado, e parecia declamar seus versos. Os carros, os ônibus, os metrôs, as pessoas, continuavam indo e vindo. Os carros, os ônibus, os bondes os metrôs, moviam-se como imensas serpentes. Agora alguns transeuntes andavam ainda mais apressados, começaria sua jornada de trabalho, o chamado terceiro turno, muitas pessoas optavam por trabalhar à noite, ou a necessidade os obrigavam.

As folhas nas árvores continuavam brincando despreocupadas. Nas praças alguns casais de namorados começavam chegar para um turno especial, homens e mulheres despendendo afetos. Estudantes ainda com a farda dos colégios, aprendiam agora outra lição, e achavam mais prazerosa do que matemática, física, química etc., etc., em que pese às “químicas”, naquele instante, estarem presentes entre eles. De repente, alguns pingos de chuva, ensaiaram estragar a festa, mas para alívio de todos fora apenas uma garoa intrusa e passageira, e todos voltaram à suas atividades, principalmente os namorados, que perdiam a noção do tempo. Testemunha dessas e doutras atividades, a noite envelhecera, e amanheceu serena.

D. Ana Gilda Soares, na infância também era chamada de Aninha, começava cedo os preparativos, pois logo, logo começaria sua jornada de 12 horas no supermercado, que se estendia das 7:00h da manhã, às 19:00h, com 1:00 hora de intervalo para o almoço. Mãe solteira acreditou no amor e na fala de, Sr. José Dutra, sucumbiu aos galanteios fortes, homem sem escrúpulos, só mais tarde ela viera se dá conta, pois o amor, cega às pessoas, e quando isso aconteceu, Aninha já morava em sua barriga há uns 03 meses.

Sr. José Dutra, ao saber da novidade, ao saber da paternidade esquivou-se, bateu perna, evaporou, e nunca mais fora visto na região, nem para saber de Ana Gilda Soares, nem de Aninha, nome esse que até hoje ele ignora, na realidade é Ana Soares Dultra, e todos já notara que o DNA, emprestara não só a cor dos olhos, mas outras características físicas, nada mais do que isso, no que tange ao caráter, passava longe, escolhera o da mãe. A educação bastante rígida de Ana Gilda Soares, ia modelando-o ainda mais, a menina era criada sob vigilância, constante e qualquer deslize era tratada com o rigor necessário, assim algumas questiúnculas entre mãe e filha eram constantes. Sabe-se que o caráter fala sobre quem você é como pessoa, e a reputação e a consciência são aspectos, são sinais, uma vez que a consciência é o que você é, enquanto que a reputação é o que os outros acham ou pensam de você.

O fato novo, é que Aninha, estava começando a descobrir as terras férteis do amor, seu coração desabrochava, e o desbravador eleito, fora Olavo Cunha, o vizinho, filho de Sr. Júlio Cunha e D. Ana Mercês Cunha, pessoas sérias, trabalhadoras. Não se sabe a quem Olavo, puxara, dizia algumas pessoas que teriam sido a um tio por parte de pai, de prenome Manoel, que morava no interior, e que a todo instante estava às voltas com a polícia, em função do seu comercio, vendia cocaína e outros derivados, a grosso e a varejo.

Olavo tinha também tendências a querer vencer na vida sem muito esforço, e já demonstrava caráter parecido com o de Sr. José Dutra, pai de Aninha, além de namorador inveterado, conquistador barato, se vangloriava da sua estampa, num show de Narcisismo.

Papo fácil, cheio de manobras, de SSS, de traquejos, e artimanhas, demonstrava grande aversão aos estudos e ao trabalho honesto, qualquer que fosse ele. Aí, residiam os desentendimentos entre mãe e filha, Sr. Olavo, apesar da pouca idade, 19 anos, era macaco velho, e nas suas manobras jogava a filha contra a mãe, a menina com o coração em festa, ingênua, acreditando no amor incondicional, não atinava para as armadilhas, assim mãe e filha se viam diante de confrontos e situações vexatórios, mais das vezes, diálogos duríssimos:

- Mãe, eu já lhe pedi o favor de não se meter na minha vida, tenha vergonha na cara, si eu me der mal, problema meu.

- Filha, eu não estou falando por mau, pois seu sofrimento será meu sofrimento.

É que Aninha queria sair para ir conhecer as delícias do namoro, seu tempero, seus desejos, seu aconchego, queria viver essa paixão de adolescente, sem freios, mas sua mãe procurando protegê-la impôs limites, pois conhecia a manobra de alguns homens, e já vacinada a tempo, a todo custo tentava livrar sua querida menina das garras do lobo mau. Não há nenhuma alusão a Chapeuzinho Vermelho.

Abrindo um parêntese, voltemos a falar sobre a relação de Sr. José Dutra, com a mãe de Aninha, Sra. Ana Gilda Soares. Parecia no início tratar-se de um amor de conto de fadas, e que, teriam nascido para o outro, porém o tempo mostrou o contrário, um pouco mais atenta D. Ana Gilda Soares, não tardou em constatar as manobras de Dutra, mas quando isso se deu, Aninha já pedia passagem, e ao ser colocado a par da situação, o homem, deu meia volta.

Na época, D. Ana Gilda Soares trabalhava como caixa de um grande supermercado, tinha um salário que fazia frente às suas necessidades, e ainda sobrava algum para investir em uma poupança pequena, coisa pouca, o que sobrava, após pagar o aluguel, suas contas diárias, entre elas o enxoval da filha, e de sempre descontar alguns chegues para o Dultra, sob a alegação, que eram cheques de seus clientes, ela era o seu banco. Cheques esses, que nunca foram descontados, pois não havia fundos, todos eles falsos.

Com foi dito, quando ela abriu os dois olhos, Aninha já acenava, Sr. José Dutra, sumira, evaporou, deixando apenas uma quantidade de cheques consideráveis, Aninha na barriga dela, e um pouco de saudade.

Após parir, cumprindo todos os trâmites legais, licença maternidade, etc., etc., quando Aninha completara 02 anos e seis meses, fora demitida, sob a alegação de contenção de despesas, e porque uma prima de sua esposa, que se formara há poucos dias em contabilidade assim se explicava Tomé Dantas, dono do supermercado, ela viria exercer as duas funções, pelo mesmo salário, o de caixa e o de contadora, (fazendo-me lembrar nesse instante da fábula contemporânea a raposa tomando conta do galinheiro), pois estaria substituindo também, Sr. Prudêncio, que após 23 anos, de dedicação exclusiva, fora pego com a boca na botija.

D. Ana Gilda Soares, conhecera o pai de Aninha, quando tinha 19 anos de idade, ele 08 anos mais velho, com experiência invejável, sagacidade, adquirida nas suas andanças, se assenhoreou do coração da jovem apaixonada, seu primeiro namorado, seu primeiro amor. Mas como fora dito com o tempo a razão foi tomando seu lugar, e apesar do carinho, do amor que nutria ele foi abrindo os olhos a ponto de deixá-los bem arregalados, porém já tinha aberto seu coração, e Aninha estava aí para comprovar, e ela aos 23 anos era mãe.

Mudança de hábito, essa mudança fora drástica, tirara a farda pacata e ingênua de caixa de supermercado, e a substituirá num espaço de 06 meses, pela pouca farda de dançarina de pole dance. É que, as economias murcharam o dinheiro que tinha guardado e mais o que recebera a título de indenização evaporaram. Os cheques de José Dutra, fora também responsável. Procurava emprego aqui e acolá, quando de repente se bate na rua com uma velha conhecida, que lhe apresentou a grande novidade.

A princípio ficara apreensiva, desconfortável, dançarina numa casa noturna? Cujo expediente ia das 22:00h às 4:30h da madrugada, contudo a necessidade venceu o escrúpulo, e no dia 23 de agosto, às 23:00h, ela fazia suas primeiras evoluções, para grande delírio de um grande público masculino, e inveja das poucas espectadoras que se aventuravam acompanhado seus consortes.

Pagava a uma senhora, D. Ana Maria Gertrudes, mãe de duas filhas, Ana Santana e Ana Rita, para cuidar de sua filinha, que agora estava com 03 aninhos de idade, a funcionária chegava às 20:00h, quando ela já estava de saída para sua atividade, e só deixava seu posto quando essa regressava por volta das 7:00h da manhã. De início achou tudo estranho, e não sabia se, si adaptaria a esse estilo de vida, e em quem pese a maternidade, recuperará seu corpo escultural, que deixava como foi dito, os homens babando, navegando a braçadas largas nas suas fantasias.

Era assediada. Investidas implacáveis de todos os lados, que não surtiam efeito, ela manteve-se firme, afinal tinha uma filhinha e tinha que ser exemplo. Entre os candidatos, havia um, por quem realmente ela demonstrava certo interesse, no anonimato, tratava-se de Antônio Lopes, delegado de polícia, frequentador assíduo, e ela notou a sua admiração por ela.

A carne enfraqueceu o juízo, saíram algumas vezes, até o dia que ela descobriu ser ele casado e pai de 03 filhas, Ana Angélica, Ana Sofia, e Ana Quitéria, que se preocupavam muito com o pai, menos Ana Sofia, que era mais ego, mais carne, e gostava excessivamente dos namoros..., desse dia em diante no seu coração, o amor deu lugar à simples amizade, de início ele relutou muito, depois anuiu à vontade dela, sabendo que era o certo a fazer, porém continuou frequentando a casa e namorando-a com os olhos.

Algum tempo depois ele quase morreu de ciúmes, quando observara que outro assumira seu posto, no coração dela, ou pelo menos na vida dela, tratava-se do médico Gaspar Dutra, é que Sra. Ana Gilda Soares, observadora como sempre, notara que essas saídas poderiam render algum extra E renderam. Registrou as intenções do médico, e cedeu, e começaram a sair, isso lhe garantia soma generosa, que se juntando ao salário oficial equilibrava as coisas em casa.

Na realidade, sentia uma grande amizade e simpatia por ele, viúvo, 11 anos mais velho do que ela, o respeitava, admirava-o, mais não era amor, davam-se bem. Ele era pai de uma filha, a senhora Ana Dutra Coelho, mãe de uma menina de 03 anos, sua neta, a Ana Crispina Dultra. Na realidade, ela gostava mesmo era do delegado, Antônio Lopes, mas ele era casado, pai de 03 filhas, e por ironia do destino, viu-se na contingência de novamente impor renúncias ao seu coração. A primeira vez tratou-se do pai de Aninha, Sr. José Dutra, que gostava frequentemente colher onde não semeava verdadeiro lobo rapace. Essa vez agora em face do delegado abdicou suas intenções amorosas, pelo fato dele ser casado. Que destino! Que desdita!

Fechando aquele parêntese e abrindo outro, vamos encontrar agora Aninha, com 19 anos de idade, mãe de Ana Cláudia Soares Cunha, fruto do seu amor tumultuado com Sr. Olavo Cunha, e que imitara ao pai de Aninha, com a notícia do rebento, evaporou-se! Tomou chá de sumiço, como se diz a gíria. Ninguém sabia dele, informavam que estava preso, em consequência, de comércio ilícito, na venda de uísques falsos, e muambas. Aninha, e a mãe estreitava os laços de amizade e ambas criavam Ana Cláudia Soares Cunha, filha de Aninha, e sua neta.

Ana Gilda Soares continuava na casa noturna, porém hoje era mais uma gerente do que dançarina, passara dos 42 anos de idade, estava prestes a inaugurar o rol das cinquentonas. É que foram chegando meninas mais novas, e assumiram o protagonismo, assim como ela o fizera. O tempo é inexorável, e nos cobra nossas ações, a lei de causa e efeito, é uma realidade.

Aninha estava prestes a se formar em enfermagem, logo, logo no final do ano, já estagiava em 02 hospitais particulares locais, o que lhe proporcionava uma renda razoável. Competente, respeitada pelos colegas, pelos chefes, logo seria efetivada após a formatura, exercia suas funções com esmero, honestidade e acima de tudo amor pelos seus pacientes, para orgulho da mãe.

Ana Gilda Soares, exercendo as funções de gerência muito pouco subia ao palco, apesar da forma exuberante para a sua idade, é que não tinha mais a mesma desenvoltura. Certa noite notara um homem sentado no fundo do salão, parecia que ele a observava, não deu importância, podia ser um cliente do passado, um admirador. Duas semanas se sucederam, e aquele homem no mesmo lugar, certa madrugada, quando ela saia com o médico após o termino do expediente não pode evitar grito de surpresa, era José Dutra, mais velho, a aparência cansada e gasta pelo tempo, pelos vícios, várias cicatrizes nos braços no rosto, possivelmente heranças dos períodos em que tivera preso. Ela falou com o médico, Sr. Gaspar Dutra, de suas desconfianças, porém, ele a convenceu de que não havia perigo, sentiu-se mais aliviada.

Passara-se um mês, e certo dia ao chegar por voltadas 20:00h, esse era seu novo horário, por força da nova função, sem que pudesse evitar fora abordada por José Dutra, queria saber do seu filho, e ficou radiante quando soube de Aninha, e da netinha. Jurou ser um homem mudado, pois a dor e o sofrimento fora o cadinho que fizera as metamorfoses, esculpindo um ser novo por dentro. Ele pediu perdão, falou do passado, e mostrou a intenção clara de reassumir seu papel de pai, de marido e avô na vidada das três.

Ouviu que da parte dela seria impossível, não guardava mágoas, mas tocara a vida para frente, e se referiu ao médico, e da relação que já durava mais de 23 anos. Quanto ao que concerne à filha e a neta, falaria com Aninha. Ele ouviu tudo atentamente não dissera mais, uma só palavra, não esboçou nenhum gesto, saiu.

Por volta das 4:30h do dia19 de agosto, quando a casa de show encerrou suas atividades naquela madrugada fria, de sexta-feira, ouviu-se dois estampidos. Ana Gilda Soares e Gaspar Dutra, o médico, dirigiam-se para o carro deste, José Dutra se acercou dos dois, e sem proferir qualquer palavra, demonstrando frieza incomum, atirou nos dois, um tiro certeiro no peito de cada um. Tentou evadir-se, mas foi alcançado pelo delegado Antônio Lopes, e seus subordinados.

A casa de show ficou fechada por 03 dias, luto em homenagem à antiga e ilustre dançarina, e a atual gerente, e ao cliente assíduo, o médico. No dia do sepultamento, em que pese à concorrência, todas as casas se irmanaram na mesma dor. Grande comoção, grande consternação tomara conta de todos. Foi de cortar o coração!

No quarto dia, no dia 23 de agosto, às 23:00h, Aninha, mãe de Ana Cláudia Soares Cunha, filha de Ana Gilda Soares, saia do antigo camarim da sua mãe, e estreava no palco, dançando no pole dance, ainda sem muito traquejo, de início achou tudo estranho, e não sabia se, si adaptaria a aquela vida, mais já dava certa demonstração, de que às vezes filha de peixe, peixinho, é!

Todos que estavam presentes a aplaudiram de pé, em homenagem à sua mãe! Ela lembrou-se da mãe, lembrou-se de filha. Chorou! Chorou copiosamente, chorou compulsivamente. Pediu vênia, curvou-se, agradeceu.

E como fizera a sua mãe, senhora Ana Gilda Soares, que contratara a senhora Ana Maria Gertrudes, para tomar conta dela, ela, agora, a contratava para tomar conta de sua filha, Ana Cláudia Soares Cunha.

Albérico Silva

 

AlbéricoCarvalho
Enviado por AlbéricoCarvalho em 07/09/2023


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